sábado, 16 de fevereiro de 2019

Algumas palavras

Aos 11 de novembro de 1970, uma criança de nove anos desapareceu da frente de sua casa, em Bauru, cidade do interior de São Paulo. Seu nome, Mara Lucia Vieira, filha de João Vieira e Leda Grossi Vieira, endereço Rua Engenheiro Saint Martin, nº 14-5, numa esquina com a Benjamin Constant.
Primeiro se pensou que a menina resolvera, na tarde daquela quarta-feira, por volta das 16,00 horas, avançar além das calçadas de sua casa, às ocultas da mãe, para brincar com coleguinhas nas adjacências, ou até mesmo mais distante a entreter-se, nalgum lugar, alheia às preocupações que sua ausência viesse causar. 
Mara Lucia, entretanto, não mais regressaria ao lar, para ser encontrada, casualmente, quatro dias depois, morta e abandonada num banheiro externo do imóvel residencial desocupado, à Rua Professor José Ranieri, 8-61, corpo nu já em estado de putrefação, a menos de seis quadras de onde vista pela última vez. Trazia marcas severas de violência física, morte por estrangulamento e agressão sexual pós óbito.
O crime gerou revolta e comoção em Bauru e repercutiu em todo o Brasil: familiares da vítima, amigos e toda a sociedade alarmados. O crime consistiu em sequestro – na época dizia-se rapto, agressão física, estrangulamento da vítima e estupro.
Caso público e midiático, todos na expectativa em saber quando, e que fosse logo, a polícia identificaria e prenderia o criminoso.
Tão logo encontrado o cadáver, a polícia iniciou as investigações, certo ou errado, na forma de pré-inquérito que levasse ao autor ou autores do delito, através de diligências sumárias determinadas de ofício pelas autoridades, não coibidas aquelas sem registros protocolares, visando maior agilidade e melhor suporte para o inquérito formal.
No 'Caso Mara Lucia' tanto a polícia, pressionada pela sociedade, quanto a mídia, ávida por notícias e divulgações visando audiência, se apressaram resolver o crime que chocara o país, mas não se conseguiu chegar ao verdadeiro autor.
Algumas versões apontaram possíveis autores do crime, agora prescrito, e dois dentre eles destacados, o Nilton Paulo Vilela Marques e o Elivaldo Torres de Vasconcelos, vulgo Francês.
Nilton Paulo, principal suspeito para a Polícia Militar e parte da população de Bauru, prestou declarações na Delegacia de Polícia acompanhado de advogado e munido de provas, que ele se encontrava em outro município no dia e momento do crime, além de não ser reconhecido pela única testemunha, o menor Décio Luiz Venturini, como o homem que estava ao lado de Mara Lucia quando vista pela última vez.
Para a população bauruense, Nilton Paulo era o culpado, talvez pela razão que o imóvel, onde localizado o cadáver da menina, fosse do seu pai, e ele ali fizesse ponto para habitual uso de drogas e encontros libidinosos, isto desde quando a casa desocupada.
O álibi de Nilton seria forjado e as autoridades o acobertavam, por ser ele filho de rica e tradicional família, todavia o seu mais sério acusador, o policial militar Felizardo Félix da Silva, que o teria fiscalizado numa inspeção de trânsito, naquele 11 de novembro de 1970, por dirigir veículo além da velocidade permitida para o local, não lavrou o auto de infração, e, assim, sem produção de qualquer prova. Houve protestos e indignações.
Outro suspeito, Elivaldo Torres de [e] Vasconcelos, vulgo Francês, que eventualmente trabalhava no ramo de instalações e reparos elétricos, conhecia Mara Lucia desde quando as respectivas famílias moravam vizinhas, divisando quintais aos fundos.
Francês tinha fama de 'tarar menores', respondeu acusações a respeito, e em depoimento, apresentou contradições, e sobre ele divergiram os delegados de polícia, chefes de equipes de investigação no 'Caso Mara Lucia'; um, o dr. Luiz Pegoraro, parecia satisfeito com o depoimento dado "Assim é que seguindo o álibi fornecido por Francês comprovamos a veracidade do mesmo", enquanto o outro, dr. José Geraldo Cremonesi, mostrou-se relutante: "Não nos convencemos da total isenção de autoria do suspeito".
O menor Décio, que teria visto Mara Lúcia pela derradeira vez, não hesitou apontar o Francês, num grupo de pessoas parecidas entre si e deliberadamente colocadas num mesmo recinto pela autoridade policial, como aquele que mais se assemelhava ao indivíduo que estava ao lado da menina, no dia da desaparição, "podendo ser ele", e isto, para o delegado presente no tal ato do reconhecimento, soou como não conclusivo para continuidade das investigações, e pouco depois o Francês já não residia mais em Bauru.
O repórter investigativo, Saulo Gomes, das Emissoras Associadas e TV 4 - Tupi, alertado por um delegado de polícia 'descobriu' o paradeiro do Francês em Rio Claro, e disto proveu estardalhaços midiáticos, fundamentado em gravações de áudio e imagens com a única testemunha ocular e do próprio suspeito, Francês, obrigando o DOPS paulista a uma atuação incidental no caso.
Os expedientes inseridos nos IP de nº 10/71 não se encontram ordenados sequencialmente, por datas, e muitas páginas juntadas em datas posteriores, até entre si desencontradas, numa juntada quase que aleatória de documentos das equipes investigativas, ou levantamentos em separado. Um típico fechar de volumes às pressas.
Após dois anos de conturbadas ou, porque não, atabalhoadas investigações e um inquérito policial malconduzido, dificilmente se chegaria ao autor do delito; e, assim, em 1974 o então 1º Promotor de Justiça da Comarca de Bauru, dr. Irahy Baptista de Abreu, solicitou arquivamento do inquérito que "vem se avolumando com as constantes idas e vindas ao fórum e delegacia de polícia locais, apenas para satisfazer à legalidade dos prazos determinados por lei desde 6 de setembro de 1972", sendo tal pedido aceito pelo Juízo de Direito de Bauru aos 14 de agosto de 1974.
Em 1º de março de 1985 o inquérito policial sobre o 'Caso Mara Lucia' foi reaberto, a pedido do então 5º Promotor de Justiça da Comarca, dr. Otacilio Garms Filho, diante de novos fatos e depoimentos que poderiam, enfim, elucidar o crime, e outra vez Nilton Paulo Vilela Marques posto como principal alvo de acusações, com novos testemunhos, afora o obsessivo Felizardo Félix insistir nas acusações, desta feita mais para denunciar sua expulsão disciplinar da Polícia Militar, relacionando-a como ato punitivo em razão do seu testemunho que incriminava o rapaz.
Dois outros suspeitos ganhariam foco: João Ugeda Medina e Milton Martinho Ribeiro. O primeiro, desavençado com o João Vieira, que o obrigara casar-se com sua sobrinha, menor de idade, grávida num relacionamento conflituoso; enquanto Milton Martinho, toxicômano conhecido, residente em frente à casa dos Vieira, que em momentos de insânias dizia-se o executor de Mara Lucia.
Medina teve seu nome envolvido pelo ex-policial civil, investigador de polícia, Luiz Fernando Comegno, apelidado Dedé, que o apontou assassino de Mara Lucia, num levantamento ilógico, denunciando-o ao delegado Francisco de Assis Moura, da Delegacia Regional de Polícia, que o encarregara das averiguações, desconsideradas pelas autoridades.
O Milton Martinho foi revelado pelo investigador policial Manuel Bento Ferreira, incumbido pelo mesmo delegado, dr. Assis Moura, para atuar no caso 'Mara Lucia', em parceria com Luiz Fernando Comegno, o Dedé, no entanto, divergindo-se do colega quanto ao autor do delito. Bento, a seu juízo, juntara provas contundentes que incriminavam o seu suspeito, contudo, paralisadas as averiguações, quando se soube já falecido o implicado.
Manuel Bento Ferreira, relataria o 'Caso Mara Lucia' entre os muitos episódios de sua vida profissional, na obra 'Um Policial embaixo do Pé de Café', pela editora Daikoku, 2013, no qual afirma a identidade daquele que seria o autor dos crimes contra a menor Mara Lucia, inclusive a reforçar o seu embasamento na revelação que obteve de um irmão do incriminado.
Ainda sobre Milton Martinho Ribeiro, o então investigador de polícia, lotado noutro município, Washington Luiz Paroneto de Andrade, um confesso usuário de drogas e comungado àquele para drogarem-se, disse tê-lo ouvido certa feita insinuar-se como assassino de Mara Lucia, no entanto, sem comprovações que pudessem, de fato, imputá-lo culpado.
Os demais testemunhos e novos levantamentos não trouxeram subsídios capazes de colocar qualquer suspeito na cena do crime. Frustrado, o promotor Garms Filho solicitou e teve deferido o arquivamento dos autos aos 09 de maio de 1989.
Nova tentativa de reabertura do inquérito policial aconteceria no ano 2000, quando da prisão e as confissões do andarilho Laerte Patrocínio Orpinelli – 'o maníaco da bicicleta', que teria assassinado dez ou mais crianças em pelo menos sete municípios paulistas, atraindo as atenções do delegado José Jorge Cardia, da Delegacia de Investigações Gerais (DIG-Garra), de Bauru.
Orpinelli, entrevistado pelo dr. Cardia, admitiu a possibilidade de ter cometido algum crime em Bauru e, diante da foto de Maria Lucia, teria reagido de modo a se lembrar da menina, na mesma faixa etária de suas vítimas, crianças entre os nove e doze anos de idade, todas mortas de maneira semelhante.
Outra coincidência apontada pelo delegado Cardia, Orpinelli classificava-se como mentalmente confuso, bem próprio de 'biruta', conforme referência que Mara Lucia fizera do homem que estava próximo a ela, no momento do encontro com Décio Luiz Venturini. Contudo, levantamentos policiais demonstraram que Orpinelli não matou Mara Lucia.